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Um espetáculo sombrio, ermo e turvo


A autora Veronica Stigger. (Foto: Eduardo Sterzi)

Sombrio, Ermo e Turvo são três munícipios da região sul de Santa Catarina, situados praticamente na divisa com o Rio Grande do Sul, onde nasceu Veronica Stigger. Em um encontro na editora Todavia, a autora afirmou ter visto a placa indicando tais localidades diversas vezes na estrada quando viajava de carro, sempre intrigada por esses nomes. O título de seu livro mais recente, então, tem nas cidadezinhas certa inspiração, mas a partir do momento em que se tornam título, essa relação vai pra um segundo plano e os substantivos próprios convertem-se em adjetivos que muito bem definem a atmosfera dos contos híbridos e túrbidos que integram a obra.


Escudado por uma liberdade absoluta, que bebe com a mesma sede das fontes da comédia e da tragédia, do real e do mágico e das mais variadas referências culturais, Sombrio ermo turvo divide-se em quatro seções nomeadas por movimentos musicais de uma sinfonia, e que portanto configuram-se em cadências e ritmos específicos formando uma espécie de composição “só possível de ser tocada às margens escuras e ardentes do inferno”, cuja harmonia se define pelo estranhamento comum a todos eles, esses textos-instrumentos. Não há como discordar da orelha da edição: Veronica Stigger possui, de fato, uma prodigiosa habilidade "para extrair o fantástico da realidade comezinha e de injetar realismo na mais imaginativa das situações”. Tomemos de exemplo "O poço", conto que inaugura o livro:


Deitei-me de corpo inteiro, como um papa, à beira do poço, com as costelas roçando o chão e as formigas vermelhas subindo pela minha barriga em direção aos meus braços, que naquele instante preciso enlaçavam a borda inesperadamente quente do poço, mas, quando inclinei a cabeça para beijar a água pura como fazia todos os dias ao fechar os olhos antes de pegar no sono desde o domingo em que deixara o poço para trás, não havia água; o poço não era mais um poço, era um buraco negro, infinito, de onde emanava um calor abafado, que me fez sorrir ao perceber que finalmente encontrara o que tanto procurava naqueles anos todos em que, sob a desculpa de matar a sede, me deitei de corpo inteiro, como um papa, à beira do poço: o único caminho de retorno ao útero ardente da terra.

Assim como no conto seguinte, “A ponte”, a despeito dos artigos definidos que acompanham seus títulos, a indefinição, ou a subversão da definição, atua como mote. Há um poço que não é poço, mas um portal para o útero ardente da terra; e então uma ponte que não funciona como ponte porque nunca é atravessada pelo protagonista. E é sempre assim nos textos seguintes: o indefinido age, o insólito desperta, o antinatural é chamado e nós assistimos ao desassossego das personagens, que mais parece nosso de tão bem projetado. Mais do que apenas terminar em suspensão, os contos transformam seus finais em verdadeiras armadilhas que detêm em cortes abruptos as expectativas do leitor; isso porque, embora o futuro dos contos seja sempre promissor, lhes interessa mais a preparação dos atos, que nós desconhecemos (e, na grande maioria das vezes, continuaremos a não conhecer), do que os atos em si, os instantes anteriores à consumação dos fatos é que são explorados como nó, e não o cumprimento deles — ou seja, tudo se ergue ao redor do não-revelado, numa construção oblíqua, como bem apontado por Victor da Rosa em resenha à revista Quatro Cinco Um.


Se pensarmos em uma das mais tradicionais acepções do conto como narrativa que captura momentos de virada na vida dos protagonistas, o conto de Stigger seria então um pré-conto, um desafio a ser transposto pela nossa inventividade, um retrato que enquadrasse não a face, mas a anteface dos sujeitos personagens, ou mais uma moldura do que uma fotografia exatamente, contribuindo ao efeito de embaçamento que recai como filtro fosco sobre as histórias. Em resenha sobre a obra, José Castello escreveu que “Veronica não facilita as coisas para si. Ao contrário: sua escrita gosta de levantar obstáculos, de promover confusões, aprecia a opacidade e a imprecisão. [...] O relato é quebradiço e caótico, sem rumo, reproduzindo a estrutura desorganizada e aleatória da vida. Retratar a vida não é amordaçá-la, ao contrário, é emparelhar com sua desordem”.


Nessa desordem que propicia esconderijos, instaura-se um clima de suspense pelas narrativas, que desprezam o miolo dos acontecimentos enquanto valorizam as rebarbas que os contornam, sem compromissos com o leitor acostumado a textos autossolucionáveis. Tudo isso faz de Sombrio ermo turvo um livro que se lê como quem assiste a um musical, quando a luz apaga e o som é interrompido no instante da grande revelação — daí em diante, fica por nossa conta o espetáculo.


Assista ao vídeo sobre o livro no canal do LiteraTamy:




 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

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