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O emaranhado da violência intrafamiliar em "Corpo desfeito", de Jarid Arraes



A infância costuma ser representada como uma fase mágica da existência humana, época de alegrias, despreocupação e acolhimento. A realidade bem que pode ser essa, mas não para todo mundo. Só no Brasil, centenas de denúncias de violência física ou psicológica contra crianças e adolescentes são recebidas diariamente pelo Sistema Nacional de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde¹. A maior parte das agressões ocorre dentro de casa. O hábito coletivo de não “meter a colher” no que acontece em âmbito privado favorece esse tipo de prática, que geralmente passa batido aos olhos da sociedade. Em Corpo desfeito (2022, Alfaguara), Jarid Arraes desmorona as paredes domiciliais que resguardam essas atrocidades.


A história, contada pela criança Amanda, refém da violência intrafamiliar, apresenta três gerações de mulheres. Fabiana, mãe da protagonista, engravidou cedo de um homem supostamente desconhecido. Tratada como meretriz pela própria genitora, ela morre ainda no início da trama e é convertida em santa por aquela que antes a maltratava. Marlene, a avó da narradora, é uma mulher religiosa e cruel que também foi vítima de crueldades inapreensíveis, as quais apenas inferimos pelos vislumbres inocentes da menina que narra. A neta, com onze anos no início da narrativa, romantiza a figura materna e fica na metade do caminho entre a infância e a vida adulta que a avó, então responsável por ela, lhe imputa brutalmente a viver. Às inúmeras tarefas domésticas, agressões verbais e físicas, soma-se a negligência parental que condena a garota à sensação angustiante de não-pertencimento ao seio familiar. Agravando ainda mais a asfixia da protagonista, Marlene canoniza Fabiana depois de sua morte, transformando-a em estátua, e obriga Amanda a cumprir com os rituais religiosos que ela inventa, inspirada por sonhos que afirma ter durante a noite, interpretados como missões.


Outra vez a religiosidade é um elemento importante no trabalho de ambientação literária de Arraes, autora de poemas, cordéis e contos. O romance tem Juazeiro, município do Ceará, como cenário, e “em Juazeiro tinha gente pagando promessa o tempo todo”. A vizinhança é um lugar onde o catolicismo como que impera. Se a maioria dos personagens têm alguma relação com a Igreja, poucos são tão devotos quanto Marlene, principalmente depois da morte da filha, quando ela vai em busca de certa purificação que o exercício religioso promete ofertar. O livro mobiliza questões pertinentes a esse universo cristão: a culpa da mulher virtuosa, a obediência, o sacrifício e a penitência designam o comportamento da avó, especialmente em relação à neta. A ideia de que “amar é como oferecer o corpo para ser punido” é introjetada em Amanda desde sempre, exemplificada na relação abusiva da avó com o avô e depois reproduzida em seu próprio corpo de criança, vítima do fundamentalismo avoengo.


Várias formas de abuso infantil aparecem no relato da menina. São especialmente chocantes as agressões corporais que ela sofre, mas o oportuno discurso em primeira pessoa também nos entrega as chagas emocionais da série de violências psicológicas que ela assimila. A omissão dos adultos ao redor é um atentado determinante para a continuidade da situação. Vulnerável como toda criança, subalterna aos desejos nocivos de uma tutora desequilibrada, Amanda ainda enfrenta o silenciamento, brasa que marca a fogo a história de sua família. O silêncio é um elemento narrativo que cava espaço para umas tantas suposições que o faro do leitor busca preencher, muitas vezes ligadas às origens da protagonista, ao pai e ao avô, por exemplo. Amanda, em cárcere, ora vê a mãe engolindo o ódio, o cansaço e a revolta, ora recebe da avó a raiva pelas agressões que ela também sofre, num ciclo intergeracional de violência difícil de superar. Traumas antigos gerando novos traumas e assim sucessivamente. Entre tais referências de mulheres, a taciturnidade e a inclemência, está Jéssica, uma amiga de escola que, além de oferecer algum alívio à narrativa, traz à protagonista uma possibilidade de desprendimento, de alegria, de amor e descoberta do eu. Um relance bem-vindo de outras formas de existir como criança e, especialmente, como menina.


Nesse emaranhado de violência, afeto e vínculos sufocantes, a ideia de corpo desfeito, que intitula o livro, se encaixa de variadas maneiras. Já a cena inicial do romance traz o corpo de criança em suplício, desfazendo-se em muitos sentidos, completamente sem autonomia e escravizado pelos desejos da avó. Há também a mãe que “talvez comesse as beiradas discretas do próprio corpo para não falar aquilo que dali não passava”, emudecida e dissoluta. Mesmo Marlene é violentada e o corpo da estátua, talvez o único em integridade, na reta final da narrativa protagoniza um momento simbólico de libertação, constituindo uma imagem carregada de significados bem retratados pelo título da obra, prenhe de significação.


O Estatuto da Criança e do Adolescente define a proteção infantil como um dever social. A despeito da postura padrão de não intervir na vida alheia, é obrigação de todos nós, enquanto sociedade, manter o estado alerta às condições de existência das crianças e interferir quando sua segurança estiver em risco. O que Jarid Arraes faz em seu primeiro romance é justamente tomar a literatura como instrumento de intervenção na violência intrafamiliar. Acessar a experiência ficcional sob a perspectiva de uma menina que sofre nos sensibiliza aos possíveis sinais de circunstâncias como essa no mundo real. E mais do que isso: Corpo desfeito não propõe apenas o movimento fundamental de lançar o olhar sobre o outro que mora ao lado e que, muitas vezes, nós desconhecemos; o livro é como um espelho que nos reflete, revelando a nossa parcela de responsabilidade sobre a vida de crianças como Amanda.



>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.


Assista à entrevista com a autora no canal do LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH - USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.


 

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