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Entre o Belo e o grotesco: "Coisa amor", de Pedro Jucá



Não é de hoje que a literatura explora as fronteiras – e a dissolução das fronteiras – entre Eu e outro. O caráter inesgotável desse campo temático, no entanto, segue rendendo projetos literários originais, como é o caso de Coisa amor (2022), reunião de contos de Pedro Jucá. Publicado pela editora Urutau, o livro se dedica a explorar narrativamente os múltiplos desdobramentos das relações amorosas sobre os sujeitos. Não só o amor romântico interessa ao autor que, formado em Psicanálise, tensiona em seus textos a morte e o sexo como situações-limite da existência humana e do conjunto de símbolos, palavras e regras a partir do qual nos organizamos coletivamente; também a amizade e as relações familiares são focos dos textos. Partindo do pressuposto de que inconsciente é linguagem, o livro passeia pelo fluxo da vida de personagens sempre transformados por experiências relativas ao amor.


O fio de unidade dos contos desenha-se no título da obra. A “coisa”, por influência freudiana, faz referência a algo interno que escapou de nós e cuja falta seria a causa do desejo, o que nos define seres desejantes. No livro, essa coisa se relaciona à materialidade corpórea fora da linguagem, a certo aspecto bestial do humano que se manifesta fundamentalmente na carne. No outro extremo está o amor, a utopia do horizonte que aflora o aspecto sublime da humanidade, nossa postura metafísica diante do viver. O choque entre esses elementos, característica fundante das narrativas curtas em questão, está bem representado no conto que intitula a coletânea e incorpora essa ambiguidade até estilisticamente, valendo-se do fluxo de consciência para abordar aspectos puramente corporais. Nos demais contos, esse mesmo embate se atualiza, arrematando a costura entre o textos.



Certa dinâmica se repete nas estórias, o movimento em que um outro vislumbra, ou mesmo decifra, o escondido do eu. Essa divisa e sua anulação são continuamente esmiuçadas, direta ou indiretamente, nas narrativas, que tanto retratam circunstâncias em que sobressai a distância entre sujeito e objeto quanto o contrário disso, demarcações borradas, momentos em que o outro está opressivamente próximo, por vezes invadindo os contornos do eu – e vice-versa. De toda forma, parece sempre haver um incômodo proveniente desse contato, e uma atenção especial às personagens como pontos irradiadores dos contos, que se sustentam justamente por esses jogos entre elas, revelando os conflitos interpessoais como ponto de partida do processo criativo do autor. Nos textos, a linguagem surge como alternativa para burlar a solidão, estabelecer uma ponte com o outro, ainda que essa ligação não passe de uma ilusão. Nesse sentido, Jucá propõe um jogo de espelhos no qual as silhuetas do leitor e do autor também estão refletidas, atuantes nos processos que sustêm a obra. “O homem, assim, não pode ver senão o que é visto pelo outro – sua visão não existe em si, ela é produto de um recado-que-volta, e, assim, coloca-se em zona de absurdo: o homem só vê o que o outro apreendeu daquilo que o homem deixou que o outro visse.”


Como a figura materna integra a primeira relação de alteridade de todo indivíduo, ela ganha atenção especial no livro, protagonizando alguns dos contos feito personagens almodovarianas, enlouquecidas ou ao menos vistas como loucas. Mais que isso, as mães chegam a interferir diretamente na maneira de amar de seus filhos-personagens. O texto “Years of solitude” é grande representante dessa presença interferente, cujo protagonista admite “[...] que todo amor chegaria até ele atravessado ao desafio impossível de se livrar da própria mãe. O molde primeiro não poderia ser quebrado porque era naquele molde que ele também guardava toda a substância de si; sem aquilo, ele se tornaria uma carcaça esvaziada”. Há algo de paradoxal e altamente perturbador nessa relação, muito propício às temáticas e efeitos levantados pela obra – além de representativo do existir para o outro e a partir do outro.


Entre o Belo e o grotesco, não raro as narrativas assumem tons elevados para tratar de temas rasteiros, colisão bem-vinda às intenções autorais de desestabilizar a visão romântica do sentimento amoroso. Naturalmente, muitas questões sobre o amor surgem nesse percurso, numa movimentação tipicamente filosófica e, como a orelha do livro anuncia, não há exatamente respostas, embora algumas constatações se esbocem. Seja como for, Coisa amor cumpre com êxito o papel de apresentar a natureza do amor como uma busca, no outro, daquilo que se perdeu no Eu – e que jamais se reestabelece.


>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.


Assista à entrevista com o autor no canal do LiteraTamy:


 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH - USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.


 

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