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A BENGALA DE CHAPLIN ou a arte como construção onírica




Esse é o exercício: a tarefa do escritor – construir espaços e paisagens para representar neles realidades ficcionais ou ficções reais impensadas, seguindo uma união de elementos de narrativa colorida feita de pedaços desiguais que não se encaixam, mas se destroem como quebra-cabeças onírico.

A Bengala de Chaplin recria Vevey, Lavaux, Santa Catarina, Paris, Lausanne e outros lugares encantadores que atuam como cenários da obra. O livro é, acima de tudo, um exercício narrativo cuja participação do leitor é imprescindível para que funcione, proporcionando experiências singulares a quem quer que o leia. Assemelhando-se aos jogos de escrita automática do surrealista André Breton – inclusive citado no romance – sem contudo perder a veia poética, a obra considera determinadas regras de execução e montagem, como a captura de fragmentos de conversas, espaços, memórias e sonhos para compor histórias que só se consumam pela inserção da subjetividade do leitor. A todo tempo o autor chama a atenção para o caráter híbrido e receptivo da obra, como uma colcha de retalhos que resulta em arte harmônica e singular.


Ainda que não haja estrutura nem temas bem delineados, foram tecidos basicamente dois fios narrativos: o primeiro conta a história de Jackson, escritor de sucesso. O segundo narra também a vida de um escritor, porém de textos não publicados. Os narradores se mesclam como pernas de dançarinos de tango. É preciso estar atento ao ritmo da música para contemplar a beleza da dança.


Evidentemente, para Flávio Dias escrever não é uma ação solitária, de duas mãos apenas, e sim uma ação coletiva em que no mínimo quatro mãos trabalham juntas: as do autor e as do leitor.  Em ambas as vertentes da história o erotismo aparece reforçando a ideia de comunhão entre aquele que escreve e aqueles que leem, uma vez que nunca surge gratuitamente, mas sim como elemento fundamental para o desempenho da trama. O sexual está sempre ligado a emoções e sentidos das personagens de modo a despertar sensações também no leitor. Tomam conta do livro especialmente duas paixões que se contrapõem: Lola, amor inquieto, anárquico, descontrolado e interferente e Helen, amor tranquilo, comedido e aconchegante. Lola e Helen são apaixonantes e complementares, apimentam e adoçam o enredo, angariando simpatizantes aqui e acolá, de acordo com o gosto do leitor que se vê livre para escolher aquela que mais lhe aprouver. Além disso, as alternâncias de narrador exigem uma percepção ativa por parte de quem lê, não só para notá-las como também para imaginar e reconhecer a voz que fala.


Para um dos narradores, “escrever é ato pansexual”. Essa constatação envolve não apenas a sexualidade presente no texto em suas mais variadas formas, como também expande os campos da obra em si. Não há lugar para tradições e convenções literárias em A bengala de Chaplin. O livro é uma tentativa do novo, um rompimento com as regras preestabelecidas, uma entrega total de todas as partes ao fazer literário. Pouco lhe importa ser classificado como romance, ensaio ou delírio: a importância está em transformar efetivamente a vida em matéria literária, seja qual for o formato resultante desse belo intento.


Permanecem nas duas histórias (além dos protagonistas escritores) os cenários e principalmente a presença da estátua de Chaplin na cidade de Vevey, cuja bengala foi diversas vezes roubada na vida real, inspirando sutilmente a criação do romance, bem como seu título. Imaginem Chaplin sem a bengala. Imaginem a estátua de Chaplin sem aquilo que a sustenta e caracteriza. Essa representação incompleta e aquém das expectativas seria a mesma imagem do livro sem a participação do leitor. Para que esse livro exista de fato e atinja seu objetivo principal, nós leitores somos necessários. Ele precisa ser lido para ser completo, assim como a estátua de Chaplin necessita de sua bengala para tornar-se um retrato legítimo.


Dotado de uma sinestesia impressionante, a mistura dos sentidos no livro o transforma em uma viagem de entrega e adoção, ficção e realidade misturando-se como se não houvesse uma sem a outra. O autor respeita as possíveis dificuldades do leitor acostumado à zona de conforto literária e abusa da metalinguagem para fazê-lo mergulhar sem medo e sem restrições nesse romance experimental corajoso e fascinante. Ao oferecer experiências de leitura excepcionais e particulares aos leitores, Flávio Dias elabora junto com eles um dos livros ousados da atualidade brasileira. Permanece a certeza de que vale a pena correr o risco.



>> Este texto é um publieditorial que reproduz integralmente a opinião do LiteraTamy.

 

Tamy Ghannam

Graduada em Letras (FFLCH- USP) e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas, é idealizadora do projeto multimídia LiteraTamy, que desde 2015 dispõe-se a difundir a literatura como prática revolucionária.

 

Assista também ao vídeo sobre o livro no canal LiteraTamy:



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